A Organização das Nações Unidas (ONU) adotou nesta segunda-feira o primeiro marco regulatório e vinculante para a proteção e o uso sustentável do mar aberto e sua biodiversidade, após 15 anos de debates e outros quatro de negociações formais. O acordo salvaguardará uma área correspondente a 40% da superfície do planeta e 64% dos oceanos, criando regras para solucionar disputas por recursos naturais, navegação e imbróglios em mares que não estão sob a jurisdição de país nenhum.
O Tratado para Biodiversidade Além da Jurisdição Nacional (BBNJ), nome formal da iniciativa, foi adotado por consenso e almeja impor ordem em um vasto território que, na prática, era terra de ninguém para temas como poluição, pesca, extração de petróleo e a incipiente mineração em águas profundas. Ele valerá para águas além das zonas econômicas exclusivas das nações, que se prolongam por até 200 milhas náuticas da costa (370 km) da costa.
— Vocês conseguiram. E vocês fizeram isso em um momento crítico — disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, após a aprovação dos 193 Estados-membros da organização. — O oceano é a força vital do nosso planeta. Hoje, ganhou vida nova e uma nova esperança para ter uma chance de lutar — completou, afirmando que o trabalho “ainda não acabou”.
O pacto só começará a valer de fato 120 dias após ao menos 60 de seus signatários o ratificarem, e a expectativa é que isso ocorra antes da próxima Conferência dos Oceanos da ONU, marcada para junho de 2025. Estima-se que o alto-mar seja habitat de centenas de milhares de espécies — muitas delas ainda não identificadas —, mas ainda assim 1,3% dessas águas são protegidas.
O novo pacto é visto como fundamental para que mundo tenha chance de cumprir o objetivo 30×30, acordado no ano passado durante a 15ª conferência da biodiversidade da ONU, a COP15. Mesmo que em termos ainda vagos, o acordo prevê que até 2030 o planeta tenha 30% de sua cobertura terrestre e oceânica transformada em reservas e territórios protegidos.
O documento recém-adota, que vinha sendo traduzido e analisado por advogados desde março, reconhece “a necessidade de endereçar, de forma coerente e cooperativa, perda de biodiversidade e degradação dos ecossistemas do oceano”. Os impactos incluem o aquecimento das águas oceânicas, a perda de oxigênio, a acidificação, o acúmulo de plástico, além da pesca indiscriminada.
Os ecossistemas marinhos, sozinhos, são responsáveis por criar metade do oxigênio que os seres humanos respiram. Quando saudáveis, também ajudam no combate ao aquecimento global, pois absorvem boa parte do dióxido de carbono emitido por atividades humanas.
Os termos englobam ainda o leito marítimo e o subsolo, além dos limites das jurisdições nacionais. Prevê também a criação de uma Conferência de Partes (COP), que irá pairar sobre a autoridade de outras organizações regionais e globais. Há autoridades que controlam setores como navegação ou pesca, mas nenhuma que diz respeito à biodiversidade.
O termo COP é com frequência usado como sinônimo para a conferência da ONU sobre mudanças climáticas, que este ano terá sua 28ª edição em Dubai — a COP30, em 2025, será em Belém, no Pará. A sigla, contudo, refere-se ao órgão governante de qualquer tratado internacional, e no caso do alto-mar, um dos obstáculos mais imediatos pode vir da autorização para a mineração em águas profundas.
A concessão de licenças para a prática é responsabilidade de Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, que em breve pode começar a conceder avais para mais companhias para além das fases de teste atualmente em curso. O órgão tem até o dia 9 de julho para determinar as regras que regularão as atividades.
Enquanto mineradoras afirma que a nova fronteira irá permitir driblar a escassez dos minerais em terra firme — entre eles, substâncias fundamentais para produzir baterias de carros elétricos, painéis e solares, ambientalistas se opõem fortemente. Os riscos ambientais são enormes, alertam, e os fatores desconhecidos também.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_7d5b9b5029304d27b7ef8a7f28b4d70f/internal_photos/bs/2023/F/7/xpJYtjQHOGYJWlRN0fcA/pexels-ulises-pena-16250918.jpg?quality=80&f=auto)
Santuários marinhos
Um dos pontos-chave do novo tratado é que permite a criação de áreas de proteção marinha, hoje quase exclusivamente em águas territoriais, e estabelece regras para que sejam criadas. Para que os santuários sejam criados, será necessário haver o apoio de três quartos dos países-membros da COP do alto-mar, ao contrário de grande parte das outras decisões, que demandarão unanimidade: isso para evitar o bloqueio de um único país ou grupo.
Há um vácuo importante, contudo, pois o texto não diz exatamente como tais áreas serão monitoradas e as fronteiras, reforçadas — pormenores que serão decisões da COP. Pelas regras, eram poderão ser criadas em áreas com recursos marinhos particularmente frágeis, ou importantes, para espécies em perigo em águas internacionais.
Com base nesses critérios, cientistas e ONGs já identificaram uma dezena de potenciais áreas marinhas. Uma das primeiras poderão ser as dorsais oceânicas de Nazca e Salas y Gómez, em frente às costas do Peru e do Chile. Outras propostas incluem a “Cidade Perdida” no Norte do Atlântico, um extenso campo de fontes hidrotermais, e o Mar Arábico. Tudo isso, contudo, pode levar vários anos.
— Quatro anos seria muito otimista. O mais realista são cinco ou seis anos, infelizmente — disse à AFP Glen Wright, pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e de Relações Internacionais (Iddri), na França. Outros especialistas creem que ainda mais tempo pode ser necessário.
Para Liz Karan, da ONG Pew Charitable Trusts, a adoção do tratado “estabelece um plano de ação para os próximos passos”. O pacto também permitirá que países e entidades que tiverem jurisdição coletem material biológico de animais e plantas que tenham potencial de ser útil, até comercialmente, e determina termos para análises de impacto ambiental.
Obstáculos
O tratado estabelece princípios para compartilhar os benefícios dos recursos marinhos genéticos procedentes do alto-mar, ponto que quase fez fracassar as negociações em março. Os países em desenvolvimento, em particular, que em geral não têm condições de financiar as caras pesquisas, demandavam não ser privados de tais benefícios. Os termos exatos do compartilhamento, entretanto, também caberão à COP, algo que deve voltar a ser motivo de divergência.
Tudo indica que não deve haver grande dificuldades para conseguir as 60 ratificações, graças à coalizão de países formada para aprovar o tratado. Parece haver ao menos 50 avais já bem encaminhados, incluindo em países da UE, Chile, México, Índia e Japão.
O debate que se seguiu à adoção nesta segunda, contudo, deixou claro que não há acordo sobre tudo. A Rússia, por exemplo, se “distanciou” do consenso ao classificar algumas partes do texto como “totalmente inaceitáveis”, afirmando que a criação de uma estrutura hierárquica irá prejudicar organismos já existentes.
O diplomata cubano Yuri Gala López, por sua fez, falou em nome do Grupo dos 77 e da China ressaltando a “batalha” travada pelos países do sul para incluir alguns aspectos-chaves do acordo. Para o chanceler chileno, Alberto van Klaveren, o texto aprovado é “essencial para a governança dos oceanos, baseada na justiça e na inclusão”, enquanto para a Venezuela é uma “vitória dos países e dos povos do sul”.
Fonte: Um Só Planeta